sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Sobre a História da Psicologia, continuação (A HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS, A HISTÓRIA DA PSICOLOGIA E O CAMPO EPISTÊMICO - Arthur Arruda Leal Ferreira)



Diante de um mundo onde cabe à ciência decidir para muitos o que é verdadeiro e confiável, questioná-la em sua legitimidade se mostra essencial para que não acabemos coexistindo com uma visão de mundo ditada por uma instância inatingível e pensada somente nos interesses das pessoas que movem suas engrenagens. Esse tipo de conhecimento pode ser pensado ao fazer a Historia das Ciências, epistemologicamente fundada ela terá um “sentido legalizante” em que seu objetivo não se funda na mensuração das teorias acumuladas em cada campo, mas sim por tentar entender os contextos que possibilitaram o surgimento desses conhecimentos que se tornaram transmissíveis horizontalmente. Assim a psicologia defronta um grande desafio. Como legitimar seu conhecimento tão disperso e de objetividade duvidosa afronte outras ciências que são consideradas praticamente indubitáveis e que exigem das outras passar pelo teste de seu método rigoroso para que sejam “legalizadas”? Por meio de quatro correntes epistemológicas, será pensado suas concepções do Progresso das Ciências e de uma História da Psicologia.

1- Os positivismos (refinamento experimental): Tal julgamento epistemológico apareceu no século XIX com a nova filosofia desenvolvida por Augusto Comte. O conhecimento nele só existiria “na medida em que este for público observável e controlável” e sua evolução consiste na acumulação de saberes pelo método experimental que progride positivando-se cada vez mais a observação do objeto dado, porém, sem a noção de ruptura que permeia nossos olhares hoje (como por exemplo, a provocada pela teoria da relatividade de Einstein). Nesse meio a psicologia é tomada como inviável pelo próprio Comte, em suas palavras: “O indivíduo pensante não poderia se dividir em dois, um raciocinando, enquanto o outro o visse raciocinar. O orgão observado e o orgão observador, sendo, neste caso, idênticos, como poderia haver a observação?”. Contudo, duas corrente psicológicas buscaram à custa de suas racionalidades provarem o contrario. A Frenologia de Franz Gall (1837) e o Behaviorismo. O primeiro cedeu à busca de uma fundamentação sociológica e o último a uma psicologia estritamente comportamental, pensada com conceitos da evolução darwiniana e donde qualquer substância mental teria um sabor metafisico. Enfim, o maior obstáculo que o positivismo coloca diante a psicologia é o acumulo de conhecimento e sua superação, pois na psicologia encontramos somente o primeiro, tendo em vista que: “As diversas psicologias são, pois, incompatíveis entre si, mas sem conseguir, por outro lado, a rejeição das restantes. E por tal, prosseguem acumulando-se, sucedendo-se sem se superar, e se mantendo mais por uma questão de moda intelectual do que de resistência científica, coexistindo numa unidade muito mais consensual do que lógica.”.
2- O Racionalismo-aplicado (inteligência crítica): Instruída por Gaston Bachelard e Georges Canguilhem. Caracteriza-se pela distinção entre o objeto natural e o cientifico, e pela superação dos projetos equivocados, tendo em vista que o objeto da ciência não esta dado no mundo, ele é construído pelos próprios pesquisadores (da maneira a qual Kant concebeu em sua “Critica da Razão pura”) e desse modo constitui-se como uma “teoria controlada pela intenção de captá-la em erro”, porque sendo parte de um projeto margeado por um método e problema que lhe são próprios, está sujeita a tal. Logo o desenvolvimento da ciência passa através de cortes e rupturas, contrariando a anterior história da experimentação positiva. A história do racionalismo toma como referencia as atualidades, não linear e progressista. Em relação à psicologia, Canguilhem afirma: “De fato, de muitos trabalhos de psicologia, se tem a impressão de que misturam uma filosofia sem rigor, uma ética sem exigência e uma medicina sem controle”. Pois, “Não havendo unidade de projeto, não há racionalidade e, pois, positividade. Não se pode demarcar a história da psicologia enquanto uma história científica, ungida pela noção de progresso, e realizada na noção de ruptura, na superação dos erros primeiros... Na psicologia, ou não cabe nenhuma história das ciências ou cabem várias”.
3- O Paradigmatismo (consenso ou dissenso da comunidade): Thomas Kuhn levou em consideração primeira de seu pensamento a dinâmica, as forças externas de uma comunidade cientifica que permite o estabelecimento de uma teoria. O novo personagem central trata-se de um produto da coletividade e não mais do individuo isolado que exclama “Eureca” ao fazer uma descoberta. Assim, “todo progresso científico se processa na alternância consenso/dissenso em torno de paradigmas” o objetivo já não se exibe mais como a busca pelo desconhecido, agora ele se estrutura como uma organização do universo sob o que já é conhecido. Ao aparecer um dissenso entre a comunidade, há um desarranjo de toda aquela organização prévia e inicia-se a busca por novas teorias que tentam explicar esse novo “todo”, até que em algum momento a comunidade se realinhe por um consenso mútuo a uma nova teoria que responda a questão levantada. A psicologia, por se encontrar em uma “revolução constante” entre seus fundamentos, não seria capaz de organizar uma comunidade em torno de um paradigma para ser superado, ela seria muito imatura. Todavia, “Como lembra Stengers, a incomunicabilidade entre paradigmas rivais (das psicologias) não se deve a diferenças teóricas, mas a diferentes modos de se produzirem fatos e a diferentes padrões de observabilidade.”
4- A Analítica de Poderes (regime de poderes): Com essa concepção Stengers buscará compreender o processo de fundação das ciências e não seus fundamentos, sem ter como objetivo denunciar alguma. “De início, deve ser estabelecido que o que demarca a ciência não é a observância de um método, mas um acontecimento imprevisível, o operador, atrelado a uma captura de interesses pela comunidade científica.”. Logo, na construção das ciências, o interesse da comunidade será um fator a priori determinante de aceitação e continuação de um projeto, implicando na obtenção de aliados a fim de defendê-lo para que assim seja atribuído um significado ao objeto em estudo a posteriori aos interesses mobilizados. Desse modo formam-se “caixas pretas” que são testemunhos “definitivos” sobre algo. A analítica de poderes dessa abordagem vê o poder “sem referência a qualquer estado de apropriação substantiva por parte de um grupo dominante em detrimento dos demais, valendo-se para tal de estratégias negativas como violência ou engodo. Trata-se de poderes múltiplos, fragmentados, que se exercem de formas diversas, operando positivamente na produção de saberes.” Quanto a psicologia, o Behaviorismo fracassaria já que seu poder emana somente de cima para baixo, mutilando seu objeto de estudo. A de Piaget exerce o poder de modo unilateral produzindo comportamentos que só tem sentido em relação ao seu protocolo. E a psicanálise também sofre dessa última crítica, pois ela promove uma captura conceitual sobre si mesma, uma “ferida narcísica”.

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