Diante de um mundo onde cabe
à ciência decidir para muitos o que é verdadeiro e confiável, questioná-la em
sua legitimidade se mostra essencial para que não acabemos coexistindo com uma
visão de mundo ditada por uma instância inatingível e pensada somente nos
interesses das pessoas que movem suas engrenagens. Esse tipo de conhecimento
pode ser pensado ao fazer a Historia das Ciências, epistemologicamente fundada
ela terá um “sentido legalizante” em que seu objetivo não se funda na
mensuração das teorias acumuladas em cada campo, mas sim por tentar entender os
contextos que possibilitaram o surgimento desses conhecimentos que se tornaram transmissíveis
horizontalmente. Assim a psicologia defronta um grande desafio. Como legitimar
seu conhecimento tão disperso e de objetividade duvidosa afronte outras
ciências que são consideradas praticamente indubitáveis e que exigem das outras
passar pelo teste de seu método rigoroso para que sejam “legalizadas”? Por meio
de quatro correntes epistemológicas, será pensado suas concepções do Progresso das Ciências e de uma História da Psicologia.
1- Os positivismos (refinamento experimental): Tal
julgamento epistemológico apareceu no século XIX com a nova filosofia
desenvolvida por Augusto Comte. O conhecimento nele só existiria “na medida em
que este for público observável e controlável” e sua evolução consiste na
acumulação de saberes pelo método experimental que progride positivando-se cada
vez mais a observação do objeto dado, porém, sem a noção de ruptura que permeia
nossos olhares hoje (como por exemplo, a provocada pela teoria da relatividade
de Einstein). Nesse meio a psicologia é tomada como inviável pelo próprio
Comte, em suas palavras: “O indivíduo pensante não poderia se dividir em dois,
um raciocinando, enquanto o outro o visse raciocinar. O orgão observado e o
orgão observador, sendo, neste caso, idênticos, como poderia haver a observação?”.
Contudo, duas corrente psicológicas buscaram à custa de suas racionalidades
provarem o contrario. A Frenologia de Franz Gall (1837) e o Behaviorismo. O
primeiro cedeu à busca de uma fundamentação sociológica e o último a uma
psicologia estritamente comportamental, pensada com conceitos da evolução
darwiniana e donde qualquer substância mental teria um sabor metafisico. Enfim,
o maior obstáculo que o positivismo coloca diante a psicologia é o acumulo de conhecimento e sua
superação, pois na psicologia encontramos somente o primeiro, tendo em vista
que: “As diversas psicologias são, pois, incompatíveis entre si, mas sem
conseguir, por outro lado, a rejeição das restantes. E por tal, prosseguem
acumulando-se, sucedendo-se sem se superar, e se mantendo mais por uma questão
de moda intelectual do que de resistência científica, coexistindo numa unidade
muito mais consensual do que lógica.”.
2- O
Racionalismo-aplicado (inteligência crítica): Instruída por Gaston Bachelard e
Georges Canguilhem. Caracteriza-se
pela distinção entre o objeto natural e o cientifico, e pela superação dos
projetos equivocados, tendo em vista que o objeto da ciência não esta dado no
mundo, ele é construído pelos
próprios pesquisadores (da maneira a qual Kant concebeu em sua “Critica da
Razão pura”) e desse modo constitui-se como uma “teoria controlada pela
intenção de captá-la em erro”, porque sendo parte de um projeto margeado por um
método e problema que lhe são próprios, está sujeita a tal. Logo o
desenvolvimento da ciência passa através de cortes e rupturas, contrariando a
anterior história da experimentação positiva. A história do racionalismo toma
como referencia as atualidades, não linear e progressista. Em relação à
psicologia, Canguilhem afirma: “De fato, de muitos trabalhos de psicologia, se
tem a impressão de que misturam uma filosofia sem rigor, uma ética sem exigência
e uma medicina sem controle”. Pois, “Não havendo unidade de projeto, não há racionalidade
e, pois, positividade. Não se pode demarcar a história da psicologia enquanto
uma história científica, ungida pela noção de progresso, e realizada na noção
de ruptura, na superação dos erros primeiros... Na psicologia, ou não cabe
nenhuma história das ciências ou cabem várias”.
3- O Paradigmatismo (consenso ou dissenso da comunidade): Thomas
Kuhn levou em consideração primeira de seu pensamento a dinâmica, as forças
externas de uma comunidade cientifica que permite o estabelecimento de uma
teoria. O novo personagem central trata-se de um produto da coletividade e não
mais do individuo isolado que exclama “Eureca” ao fazer uma descoberta. Assim,
“todo progresso científico se processa na alternância consenso/dissenso em torno
de paradigmas” o objetivo já não se exibe mais como a busca pelo desconhecido,
agora ele se estrutura como uma organização do universo sob o que já é
conhecido. Ao aparecer um dissenso entre a comunidade, há um desarranjo de toda
aquela organização prévia e inicia-se a busca por novas teorias que tentam
explicar esse novo “todo”, até que em algum momento a comunidade se realinhe
por um consenso mútuo a uma nova teoria que responda a questão levantada. A
psicologia, por se encontrar em uma “revolução constante” entre seus
fundamentos, não seria capaz de organizar uma comunidade em torno de um
paradigma para ser superado, ela seria muito imatura. Todavia, “Como lembra
Stengers, a incomunicabilidade entre paradigmas rivais (das psicologias) não se
deve a diferenças teóricas, mas a diferentes modos de se produzirem fatos e a
diferentes padrões de observabilidade.”
4- A Analítica de Poderes (regime de poderes): Com
essa concepção Stengers buscará compreender o processo de fundação das ciências
e não seus fundamentos, sem ter como objetivo denunciar alguma. “De início,
deve ser estabelecido que o que demarca a ciência não é a observância de um
método, mas um acontecimento imprevisível, o operador, atrelado a uma captura
de interesses pela comunidade científica.”. Logo, na construção das ciências, o
interesse da comunidade será um fator a priori
determinante de aceitação e continuação de um projeto, implicando na obtenção de
aliados a fim de defendê-lo para que assim seja atribuído um significado ao
objeto em estudo a posteriori aos interesses
mobilizados. Desse modo formam-se “caixas pretas” que são testemunhos “definitivos”
sobre algo. A analítica de poderes dessa abordagem vê o poder “sem referência a
qualquer estado de apropriação substantiva por parte de um grupo dominante em detrimento
dos demais, valendo-se para tal de estratégias negativas como violência ou engodo.
Trata-se de poderes múltiplos, fragmentados, que se exercem de formas diversas,
operando positivamente na produção de saberes.” Quanto a psicologia, o
Behaviorismo fracassaria já que seu poder emana somente de cima para baixo,
mutilando seu objeto de estudo. A de Piaget exerce o poder de modo unilateral
produzindo comportamentos que só tem sentido em relação ao seu protocolo. E a
psicanálise também sofre dessa última crítica, pois ela promove uma captura
conceitual sobre si mesma, uma “ferida narcísica”.